Trabalho de conclusão da disciplina CRÍTICA LITERÁRIA, no curso de pós-graduação em LITERATURA BRASILEIRA, da Faculdade Frassineti do Recife, em 2004.
São Bernardo é um livro de memórias que começa de um
modo peculiar. O "dono" da história reserva o primeiro capítulo
falando respectivamente;
— Do esquema elaborado por ele para construção da
narrativa - o trabalho seria dividido por competências: um padre ficaria
responsável pelas citações em latim e o conteúdo moral, um amigo com a
formatação e uma terceira pessoa, redator de um jornal, trabalharia a
construção literária propriamente dita;
— Do entusiasmo que tomou conta dele, por acreditar no
total sucesso do empreendimento;
— E finalmente da constatação de que as pessoas
envolvidas não se entendiam (ou não faziam como ele esperava) o que tornou o
projeto inicial simplesmente inviável. Tem-se a impressão, neste ponto, de que
a ideia gorara de vez, ou seja, o que seria o registro de vida ira
transformar-se em um rosário de lamentações a desfiar-se em justificativas por
não haver "como" contar sua história.
O segundo capítulo inicia-se ratificando a desistência
- "Abandonei a empresa" - para
logo em seguida dizer que não é nada disso, que vai voltar, sim, à composição,
e desta vez por conta própria, já admitindo que a interferência dos "ghost-writers" comprometeriam a
autenticidade da obra, pois - é neste ponto que entende-se tratar-se de
memórias - ele não teria coragem de expor sua vida nua e crua, na integra, para
os auxiliares. Os motivos para tamanha reserva são justificados logo que
inicia os seus registros.
Estes dois capítulos, a princípio, podem parecer
divagações dispensáveis ao corpo da trama central, pois não trazem nenhuma
informação direta sobre o objeto de sua narrativa. Neles encontramos, apenas,
em uma leitura superficial, a discussão sobre se haverá ou não a possibilidade
de construí-la (a narrativa).
Um olhar mais cuidadoso para o conteúdo dos capítulos
um e dois faz reconhecer o modo fascinante que Graciliano Ramos usou para dar,
tanto os primeiros traços de Paulo Honório, quanto os laços que o ligam ao
leitor.
A exposição do dilema querer escrever X não conseguir
escrever que perpassa todo o segundo capítulo cria um conexão imediata entre
quem lê e o narrador, propiciando um clima de cumplicidade entre os dois,
afinal ele (Paulo), de quem nada (ou muito pouco) se sabe até este momento,
partilha suas angústias sem meias palavras, sem as máscaras que temia usar. É
inevitável. O leitor é alçado ao papel de confessor e este efeito não seria
conseguido, se o livro iniciasse já com o
conteúdo do capítulo três.
Antes do grande mergulho, no entanto, vem um momento
de insegurança (ou medo de (re)ver a si mesmo), quando Paulo Honório parece
constatar a inutilidade do conteúdo do primeiro e segundo capítulos; "Dois
capítulos perdidos. Talvez não fosse mau aproveitar os do Gondim, depois de expurgados."
Esta afirmação, por tudo que já foi argumentado anteriormente, não pode ser
aceita, absolutamente, como verdade. Todas informações contidas servem,
inclusive, como porta de entrada para São Bernardo, como substância base para o
entendimento do discurso e do próprio Paulo Honório.
Percebemos logo de cara que não estamos, tampouco,
diante da história de vida de um homem inseguro, que criou um longo
chove-não-molha para retardar o confronto com uma dura realidade ou com a culpa.
Nem é ele um contador de histórias incompetente, sem controle qualquer sobre
suas lembranças. Nada disso. O mergulho no seu universo foi mencionado e o
mergulho total e profundo virá, com uma narrativa frenética que mal dá tempo ao
leitor para que tome fôlego, pois ele próprio (narrador) não parece muito
preocupado em respirar, uma vez que engata no ritmo certo.
Daí em diante o dinamismo que o fazendeiro usou para
construir seu império é confirmado e tem reflexo no jeito adotado por ele para
narrar sua trajetória. Com frases curtas, idéias diretas e sem rodeios, em
pouco menos de quatro páginas sabemos parte consistente de sua saga e com que tipo de pessoa estamos lidando.
Uma pessoa rude, forjada para a truculência, mas dotada de uma tremenda
sagacidade e detentor de uma inteligência prodigiosa. Um bruto nos modos, porém
não no intelecto.
Se, por um lado, à medida que a história toma corpo,
fica cada vez mais patente que a violência é uma de suas marcas mais fortes,
por outro vai também crescendo e confirmando-se a noção de sua extrema
competência, tanto para tecer sua tramoias, quanto para tecer as tramas de seu
enredo.
Um primeiro exemplo a aparecer no livro é contado a
partir de um ocorrido, envolvendo um certo Dr. Sampaio, que comprou de Paulo
Honório - no tempo em que este ainda era peão - uma boiada, mas na hora de
fazer o acerto pelos animais e o serviço de entrega, não quis efetuar o
pagamento e ficou "palitando os dentes" - imagem que mostra o quanto
o tal doutor colocava-se em uma posição inatingível (provavelmente por ser uma
pessoa poderosa em sua região) e que despertou em Paulo um enorme desejo de
acerto de contas. A situação lhe era em tudo desfavorável. Estava em uma terra
"estranha", lidando com uma pessoa acima do bem e do mal, não tinha
dinheiro. Qualquer outro teria recolhido-se a sua insignificância e seguido o
seu caminho de mãos abanando. Só que Paulo Honório tinha de seu lado qualidades
que lhe davam um outro tipo de poder: o raciocínio frio, para elaborar no calor
do ódio um plano B, e a paciência para esperar o momento certo de
contra-atacar. E a hora do acerto veio depois de haver sido calculada com
método:
Não desanimei: escolhi uns rapazes em
Cancalancó e quando o doutor ia para a fazenda caí-lhe em cima de supetão.
Amarrei-o, meti-me com ele na capoeira , estraguei-lhe os couros nos espinhos
dos mandacarus, quipás, alastrados e rabos-de-raposa. (...) O doutor, que
ensinou rato a furar almotolia, sacudiu-me a justiça e a religião. (RAMOS,
1985, p. 14)
Consegue fazer "justiça",
recebe seu pagamento e continua alerta mais do que nunca, pois o ocorrido o
calejou inexoravelmente e o faz extremamente cuidadoso de sua
"fortuna".
Não tornei a aparecer por aquelas bandas. Se
tornasse, era um tiro de pé de pau na certa, a cara esfolada para não ser
reconhecido quando me encontrassem com os dentes para fora, fazendo munganga
para o sol, e a supressão da minha fortuna, que eu conduzia dentro de um
chocalho grande, arrolhado com folhas e pendurados no arção da sela. Ali estava
em segurança: se o dinheiro e as folhas caíssem, o chocalho tocava. (RAMOS,
1985, p.15)
Esta enxurrada de
informações cria um certo atordoamento, porém esclarece e reforça cada vez mais
a figura geral de Paulo Honório, tanto como personagem, quanto como responsável
pela enunciação dos fatos. Depois daquela hesitação inicial (capítulos 1 e 2),
tudo nele passa a ser direto e contundente.
Pode parecer que é desavergonhada a maneira direta que
usa para narrar as atitudes tomadas por ele e alcançar seus objetivo, mas uma
atenção extra fará ver que esta exposição tem muito mais o caráter de exorcismo de que de descaramento. Tem-se a
afirmação do próprio narrador de que há intenção de publicar a obra sim, mas
sob um pseudônimo, condição que dá a ele todo o distanciamento e liberdade para
ser o mais honesto possível. Paulo Honório não poupa as autocríticas e mostra
que as considerações que recebe devem-se muito mais ao temor do que ao respeito
que ele inspira aos que o cercam.
Começo declarando que me chamo Paulo Honório,
peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro. A idade,
o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo
têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidade, a
consideração era menor. (RAMOS, 1985, p.12)
Um feito
admirável de Graciliano é ele conseguir não ficar - em momento algum - entre o
narrador e o leitor. Algo comum nas memórias de ficção é associar este ou
aquele personagem (que conta ou de quem se conta a história) ao autor do livro,
fazendo-se em maior ou menor dimensão um link entre os dois. Isto não acontece
em São Bernardo. Quem temos materializado diante de nos é o agreste Paulo
Honório. Ao genial autor, fica o mérito
de ter criado um ser "sedutor" a este ponto.
Além do ritmo envolvente da trama, em São Bernardo
podemos observar o registro das ideias do narrador sob forma de frases de
efeito. Sentenças que podem até ser consideradas como colocações filosóficas
dentro do universo "Honoriano"; "estudei
aritmética para não ser roubado além da conveniência"(p.13); "Está
claro que o jogo é uma profissão, embora censurável, mas o homem que bebe
jogando não tem juízo."(p. 16); "(...)
se você tivesse fechado cigarros, sabia como é difícil enrolar um milheiro
deles." (p. 19); "Muitas
vezes por falta de um grito se perde uma boiada." (p.161) Todas estas
colocações assumem, irremediavelmente, a condição de ditados populares de tão
"sonoras" que são. E para além da sonoridade, revelam muito do seu
caráter.
Uma característica também marcante de Paulo Honório
enquanto compositor do texto é a atenção que ele faz voltar para a quantidade
de tempo em que passava remoendo ideias fixas. Em especial quando ele estava
vivendo momentos de maiores crises junto a Madalena e tudo que via e ouvia dava
brecha para interpretações dúbias. As ocasiões são muitas em que ele vai e volta
em um remoer insistente de imagens e situações;
"Sim senhor! Conluiada com o Padilha e
tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu
construindo e ela desmanchando.
Levantamo-nos e fomos tomar café no salão.
—
Sim senhor,
comunista" (RAMOS, 1985, p.130)
Ele evidencia o quão inquieta estava sua mente por
conta das inseguranças que sentia e coloca o leitor em comunhão direta com
elas. São muitos os momentos em que Paulo Honório parece dizer: "Olhem o
que minha mente doentia foi capaz de articular, a que ponto pode chegar um
homem sem um pingo de inteligência emocional."
Em algumas passagens do texto pode parecer que ele
tenta convencer o leitor de que foi vítima deste despreparo emocional, mas, ao
final entendemos que estamos testemunhando um mea culpa pleno. E se, por qualquer situação, durante o decorrer da
história não se conseguiu alcançar que esta é a verdadeira intenção das
memórias, com a descrição do que se passa em seu íntimo a partir da morte da
esposa, podemos visualizar o que ele estava tentando alcançar ao registrar sua
vida.
A lenta deterioração da fazenda e do império
construído por ele é o reflexo material do que o come por dentro. - "Julgo
que me desnorteie numa errada" (RAMOS, 1985, p. 183). Nos negócios
tudo estava a andar para trás e uma infelicidade parecia puxar a outra, mas
isto, somente, não seria suficiente para abater um homem acostumado a reverter
situações difíceis quando tudo parecia perdido.
No entanto, o pio da coruja no forro da igreja lembra-lhe
em vários momentos que nada mais será como antes, que ele não é mais os mesmo e
não tem mais a motivação necessária para reconstruir seu mundo. Resta apenas
remoer uma última vez todas as coisas que construiu e destruiu em sua
empreitada, e é este apanhado geral que testemunhamos no capítulo final. " Faz dois anos que Madalena morreu,
dois anos difíceis. E quando os amigos deixaram de vir discutir política, isto
se tornou insuportável'. O monólogo interior que conclui o livro pode
parecer incongruente com o comportamento de toda uma vida, mas é perfeitamente
justificável quando vemos que há um entendimento por parte do
narrador/personagem de todo mal causado por ele. Contra ele próprio inclusive.
Cinqüenta
anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem sabe
para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas
as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os
filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é
bom vir o diabo e levar tudo? (RAMOS, 1985, p.181)
O Paulo Honório das
páginas finais é um homem arrasado. Todos seus medos, todas as angústias de sua
alma ficam estampadas no tom lúgubre do desfecho de seu discurso. Ele não mede
palavras e não economiza em símbolos para ilustrar o grau de frustração que o
domina por completo. Todas as
coisas que diz nesta parte são tão carregadas de dor, o cansaço é tão presente,
que contamina diretamente o andamento da narração. O dilema de não poder
escrever volta a assombrá-lo e as forças parecem querer abandoná-lo.
"Ás vezes entro pela noite, passo tempo
sem fim acordando lembranças. Outras vezes não me ajeito com esta ocupação
nova.
Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos.
Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a
chuva da serra, e o que me apareceu foi um grande desgosto. Desgosto e a vaga
compreensão de muita coisa que sinto." (RAMOS, 1985, p.180)
Aparecem arrependimentos, auto-condenações, mas também
a certeza de que se outra chance lhe fosse dada, provavelmente suas atitudes
seriam a mesma. Ele não alimenta falsa ilusões de que poderia ser uma pessoa
melhor. Gostaria de ser, mas não vê como. Não teria condições de lutar contra si
próprio e uma essência brutal, apesar de crer "que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu
qualidades tão ruins." (RAMOS. 1985, p. 187).
Ao passo que seu sufoco vai aumentando - por conta da
vela que irá apagar-se a qualquer minuto, a construção do seu texto vai ficando
mais picotada, tal qual suspiros, engasgos, cambalear de cabeças em fadiga. Até
que, como se dominada pela escuridão súbita, encerra-se.
AUTORA: Carla M Malaquias P Monteiro
NOTA: Resolvi publicar os trabalhos acadêmicos que tenho arquivado em meu computador, até como forma de guardá-los para o futuro. Vários foram perdidos junto com PCs que "deram pau" e hoje lamento não ter como resgatá-los.
REFERÊNCIAS ÚTEIS
CANDIDO, Antonio. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva. 2004.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Record. 1985.
* Vídeo de Tatiana Feltrin sobre SÃO BERNARDO. Este ensaio foi um dos textos de apoio citado por ela. Obrigada Tati.
Um beijo e ótimas leituras!