Palavras...

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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Romances de Machado em ordem cronológica #3: MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS (1881).

"A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus."


Ateliê Editorial, 309 páginas


"O que faz do meu Brás Cubas uma autor particular é o que ele chama "rabugens de pessimismo". Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo." (M.A. no prefácio da 4a. edição) 

  As Memórias Póstumas de Brás Cubas contam a história de um sujeito que não fez nada de relevante durante sua vida, mas, que na morte consegue o distanciamento necessário para expor, de forma implacável, tanto sua medíocre existência quanto a hipócrita sociedade em que estava inserido. Analisando os acontecimentos da perspectiva do além-túmulo, o narrador adota o tom de quem pouco se importa com o julgamento do leitor e escancara geral. Brás Cubas, que, se houvesse existido de verdade, teria sido repugnante, é (em meu ponto de vista) uma das melhor es personagens da literatura.

  Filho único, mimado ao extremo por um pai permissivo e uma mãe submissa, desde cedo percebeu que estava inserido em um ambiente no qual todo e qualquer comportamento seu seria aceito e até endossado. A má índole encontrou a terra propícia para fertilizar suas sementes, e no Capítulo XI - O MENINO É O PAI DO HOMEM - o autor mostra, sem vergonha alguma, sua natureza perniciosa.    

"Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de menino diabo; e verdadeiramente não era outra coisa; foi o mais maligno do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce por pirraça; e eu tinha apenas seis anos." (p.87)

 "De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores;mas entre a manhãe a noite fazia uma grande maldade, e meu pai passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: -Ah!brejeiro! ah! brejeiro!" (p.88) 

"Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, (...) O marido era na terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que se tinha alguma coisa de boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em partes, negativa." (p.88) 

 Com um narrador-personagem tão execrável, a história poderia ter embarcado em uma vibe bem repugnante, não fosse o talento e a maestria narrativa de Machado. Brás Cubas é uma "pessoa" horrível, só que é engraçado, espirituoso e sedutor. É impossível não cair na lábia do safado! 

  Acho que esta foi a quinta ou sexta vez que li o livro e não deu outra; a sensação de I love to hate you estava lá, novinha em folha.

  Até Woody Allen se rendeu ao "defunto-autor", e em 2011 elegeu Memórias Póstumas de Brás Cubas um dos cinco livros que mais tiveram impacto sobre sua vida e sua obra. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian ele afirmou sobre Machado de Assis e seu texto: 

"...fiquei chocado com como ele era charmoso e divertido. Não acreditava que ele tivesse vivido  numa época tão distante. Você pensaria que foi escrito ontem. É tão moderno e prazeroso. É uma obra muito, muito original."

  É como sempre digo: Machado É Machado. Único, incomparável, fenomenal! 


Um beijo e ótimas leituras.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Eu recomendo: NO MAR de Toine Heijmans

"É assim. Não se pode velejar para sempre, chega um momento em que querem você de volta à terra."


Mar do Norte - imagem de um satélite da NASA.



 "Não há razão para se arriscar...
(Última frase do diário de bordo do velejador  solitário Donald Crowhurst, 1969.)"

"Ele foi o arquiteto de sua própria ruína.
Tentou fazer algo que saiu desastrosamente errado.
(Seu filho, Simon Crowhurst, em entrevista ao jornal  britânico THE TIMES, 2006)"


  Estes dois trechos acima são as epígrafes do livro...

Cosac Naif, 160 páginas
(Disponível no programa KINDLE UNLIMITED)


  Foi no mínimo preocupante, para mim, começar o texto que fala sobre uma viagem de barco no Mar do Norte com introduções tão agourentas. 

Abre parenteses.
  
  Como eu nunca tinha ouvido falar em Donald Crowhurst, fui pesquisar pra saber qual era o caso; até para ficar atenta às possíveis conexões entre os fatos e a ficção. Deixo aqui o link da Wikipedia que contém um resumo da história.

Fecha parenteses. 

  
  O livro do escritor holandês conta a história de Donald (!), um homem na faixa dos 40 anos, desiludido com a vida corporativa, que decide tirar três meses de licença para clarear as ideias. Velejador amador, ele resolve passar este tempo circulando, em seu pequeno veleiro Ishmael (!!), pelo Mar do Norte. Ao final deste período sabático, nas ultimas 48 horas de viagem, sua filha de 7 anos, Maria, se junta a ele. É justamente neste momento - quando ele já está esgotado pela dura rotina no mar e preocupado com que o espera no regresso - que tudo sai dos eixos. 

  Boa parte da narrativa tem a forma de um diário de bordo, no qual Donald registra muito mais das suas lembranças, angustias e receios, do que dos fatos técnicos relacionados à navegação. 

"Crianças não diferenciam sonho de realidade. Seria bom se adultos também fizessem isso às vezes. Para mim, a realidade também pode ser um sonho. E vice-versa." 

"Maria é uma criança forte. Foram poucas vezes que a vi com medo. De qualquer forma, ela não conhece o medo adulto, que esmaga os miolos da gente. Medo de criança é diferente. É fácil de espantar (...) Medo mesmo a gente só sente mais tarde." 

"Um barco pode zarpar, mas no fim tem que retornar a um porto. O mundo é assim. Os únicos barcos que permanecem no mar são os que naufragaram." 

"Pais cedem mais rápido que mães. Mães sabem que o amor de seus filhos é incondicional. Elas podem se permitir certas coisas. Pais têm algo a provar."

  O leitor fica com a sensação que tem alguma coisa que não bate no relato, mas o discurso do cara é tão envolvente, tão carregado de expectativas, que é impossível não se deixar levar. 

  Este foi meu primeiro contato com a literatura holandesa e me deixou com uma impressão boníssima. Um texto tenso, por vezes angustiante, porém de uma beleza incomum.

  Um beijo e ótimas leituras.