Palavras...

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quarta-feira, 3 de outubro de 2018

O discurso de Paulo Honório em SÃO BERNARDO de Graciliano Ramos

Trabalho de conclusão da disciplina CRÍTICA LITERÁRIA, no curso de pós-graduação em LITERATURA BRASILEIRA, da Faculdade Frassineti do Recife, em 2004.


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São Bernardo é um livro de memórias que começa de um modo peculiar. O "dono" da história reserva o primeiro capítulo falando respectivamente;
— Do esquema elaborado por ele para construção da narrativa - o trabalho seria dividido por competências: um padre ficaria responsável pelas citações em latim e o conteúdo moral, um amigo com a formatação e uma terceira pessoa, redator de um jornal, trabalharia a construção literária propriamente dita;
— Do entusiasmo que tomou conta dele, por acreditar no total sucesso do empreendimento;
— E finalmente da constatação de que as pessoas envolvidas não se entendiam (ou não faziam como ele esperava) o que tornou o projeto inicial simplesmente inviável. Tem-se a impressão, neste ponto, de que a ideia gorara de vez, ou seja, o que seria o registro de vida ira transformar-se em um rosário de lamentações a desfiar-se em justificativas por não haver "como" contar sua história.
O segundo capítulo inicia-se ratificando a desistência - "Abandonei a empresa"  - para logo em seguida dizer que não é nada disso, que vai voltar, sim, à composição, e desta vez por conta própria, já admitindo que a interferência dos "ghost-writers" comprometeriam a autenticidade da obra, pois - é neste ponto que entende-se tratar-se de memórias - ele não teria coragem de expor sua vida nua e crua, na integra, para os auxiliares. Os motivos para tamanha reserva são justificados logo que inicia  os seus registros.
Estes dois capítulos, a princípio, podem parecer divagações dispensáveis ao corpo da trama central, pois não trazem nenhuma informação direta sobre o objeto de sua narrativa. Neles encontramos, apenas, em uma leitura superficial, a discussão sobre se haverá ou não a possibilidade de construí-la (a narrativa).
Um olhar mais cuidadoso para o conteúdo dos capítulos um e dois faz reconhecer o modo fascinante que Graciliano Ramos usou para dar, tanto os primeiros traços de Paulo Honório, quanto os laços que o ligam ao leitor.
A exposição do dilema querer escrever X não conseguir escrever que perpassa todo o segundo capítulo cria um conexão imediata entre quem lê e o narrador, propiciando um clima de cumplicidade entre os dois, afinal ele (Paulo), de quem nada (ou muito pouco) se sabe até este momento, partilha suas angústias sem meias palavras, sem as máscaras que temia usar. É inevitável. O leitor é alçado ao papel de confessor e este efeito não seria conseguido, se o livro iniciasse já com o  conteúdo do capítulo três.
Antes do grande mergulho, no entanto, vem um momento de insegurança (ou medo de (re)ver a si mesmo), quando Paulo Honório parece constatar a inutilidade do conteúdo do primeiro e segundo capítulos; "Dois capítulos perdidos. Talvez não fosse mau aproveitar os do Gondim, depois de expurgados." Esta afirmação, por tudo que já foi argumentado anteriormente, não pode ser aceita, absolutamente, como verdade. Todas informações contidas servem, inclusive, como porta de entrada para São Bernardo, como substância base para o entendimento do discurso e do próprio Paulo Honório.
Percebemos logo de cara que não estamos, tampouco, diante da história de vida de um homem inseguro, que criou um longo chove-não-molha para retardar o confronto com uma dura realidade ou com a culpa. Nem é ele um contador de histórias incompetente, sem controle qualquer sobre suas lembranças. Nada disso. O mergulho no seu universo foi mencionado e o mergulho total e profundo virá, com uma narrativa frenética que mal dá tempo ao leitor para que tome fôlego, pois ele próprio (narrador) não parece muito preocupado em respirar, uma vez que engata no ritmo certo.
Daí em diante o dinamismo que o fazendeiro usou para construir seu império é confirmado e tem reflexo no jeito adotado por ele para narrar sua trajetória. Com frases curtas, idéias diretas e sem rodeios, em pouco menos de quatro páginas sabemos parte consistente de sua saga e com que tipo de pessoa estamos lidando. Uma pessoa rude, forjada para a truculência, mas dotada de uma tremenda sagacidade e detentor de uma inteligência prodigiosa. Um bruto nos modos, porém não no intelecto.
Se, por um lado, à medida que a história toma corpo, fica cada vez mais patente que a violência é uma de suas marcas mais fortes, por outro vai também crescendo e confirmando-se a noção de sua extrema competência, tanto para tecer sua tramoias, quanto para tecer as tramas de seu enredo.
Um primeiro exemplo a aparecer no livro é contado a partir de um ocorrido, envolvendo um certo Dr. Sampaio, que comprou de Paulo Honório - no tempo em que este ainda era peão - uma boiada, mas na hora de fazer o acerto pelos animais e o serviço de entrega, não quis efetuar o pagamento e ficou "palitando os dentes" - imagem que mostra o quanto o tal doutor colocava-se em uma posição inatingível (provavelmente por ser uma pessoa poderosa em sua região) e que despertou em Paulo um enorme desejo de acerto de contas. A situação lhe era em tudo desfavorável. Estava em uma terra "estranha", lidando com uma pessoa acima do bem e do mal, não tinha dinheiro. Qualquer outro teria recolhido-se a sua insignificância e seguido o seu caminho de mãos abanando. Só que Paulo Honório tinha de seu lado qualidades que lhe davam um outro tipo de poder: o raciocínio frio, para elaborar no calor do ódio um plano B, e a paciência para esperar o momento certo de contra-atacar. E a hora do acerto veio depois de haver sido calculada com método:

Não desanimei: escolhi uns rapazes em Cancalancó e quando o doutor ia para a fazenda caí-lhe em cima de supetão. Amarrei-o, meti-me com ele na capoeira , estraguei-lhe os couros nos espinhos dos mandacarus, quipás, alastrados e rabos-de-raposa. (...) O doutor, que ensinou rato a furar almotolia, sacudiu-me a justiça e a religião. (RAMOS, 1985, p. 14)

            Consegue fazer "justiça", recebe seu pagamento e continua alerta mais do que nunca, pois o ocorrido o calejou inexoravelmente e o faz extremamente cuidadoso de sua "fortuna".

Não tornei a aparecer por aquelas bandas. Se tornasse, era um tiro de pé de pau na certa, a cara esfolada para não ser reconhecido quando me encontrassem com os dentes para fora, fazendo munganga para o sol, e a supressão da minha fortuna, que eu conduzia dentro de um chocalho grande, arrolhado com folhas e pendurados no arção da sela. Ali estava em segurança: se o dinheiro e as folhas caíssem, o chocalho tocava. (RAMOS, 1985, p.15)

            Esta enxurrada de informações cria um certo atordoamento, porém esclarece e reforça cada vez mais a figura geral de Paulo Honório, tanto como personagem, quanto como responsável pela enunciação dos fatos. Depois daquela hesitação inicial (capítulos 1 e 2), tudo nele passa a ser direto e contundente. 
Pode parecer que é desavergonhada a maneira direta que usa para narrar as atitudes tomadas por ele e alcançar seus objetivo, mas uma atenção extra fará ver que esta exposição tem muito mais o caráter  de exorcismo de que de descaramento. Tem-se a afirmação do próprio narrador de que há intenção de publicar a obra sim, mas sob um pseudônimo, condição que dá a ele todo o distanciamento e liberdade para ser o mais honesto possível. Paulo Honório não poupa as autocríticas e mostra que as considerações que recebe devem-se muito mais ao temor do que ao respeito que ele inspira aos que o cercam.

Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Quando me faltavam estas qualidade, a consideração era menor. (RAMOS, 1985, p.12)
 
 Um feito admirável de Graciliano é ele conseguir não ficar - em momento algum - entre o narrador e o leitor. Algo comum nas memórias de ficção é associar este ou aquele personagem (que conta ou de quem se conta a história) ao autor do livro, fazendo-se em maior ou menor dimensão um link entre os dois. Isto não acontece em São Bernardo. Quem temos materializado diante de nos é o agreste Paulo Honório.  Ao genial autor, fica o mérito de ter criado um ser "sedutor" a este ponto.
Além do ritmo envolvente da trama, em São Bernardo podemos observar o registro das ideias do narrador sob forma de frases de efeito. Sentenças que podem até ser consideradas como colocações filosóficas dentro do universo "Honoriano"; "estudei aritmética para não ser roubado além da conveniência"(p.13);  "Está claro que o jogo é uma profissão, embora censurável, mas o homem que bebe jogando não tem juízo."(p. 16); "(...) se você tivesse fechado cigarros, sabia como é difícil enrolar um milheiro deles." (p. 19); "Muitas vezes por falta de um grito se perde uma boiada." (p.161) Todas estas colocações assumem, irremediavelmente, a condição de ditados populares de tão "sonoras" que são. E para além da sonoridade, revelam muito do seu caráter.
Uma característica também marcante de Paulo Honório enquanto compositor do texto é a atenção que ele faz voltar para a quantidade de tempo em que passava remoendo ideias fixas. Em especial quando ele estava vivendo momentos de maiores crises junto a Madalena e tudo que via e ouvia dava brecha para interpretações dúbias. As ocasiões são muitas em que ele vai e volta em um remoer insistente de imagens e situações;

"Sim senhor! Conluiada com o Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando.
Levantamo-nos e fomos tomar café no salão.
     Sim senhor, comunista" (RAMOS, 1985, p.130)

Ele evidencia o quão inquieta estava sua mente por conta das inseguranças que sentia e coloca o leitor em comunhão direta com elas. São muitos os momentos em que Paulo Honório parece dizer: "Olhem o que minha mente doentia foi capaz de articular, a que ponto pode chegar um homem sem um pingo de inteligência emocional."
Em algumas passagens do texto pode parecer que ele tenta convencer o leitor de que foi vítima deste despreparo emocional, mas, ao final entendemos que estamos testemunhando um mea culpa pleno. E se, por qualquer situação, durante o decorrer da história não se conseguiu alcançar que esta é a verdadeira intenção das memórias, com a descrição do que se passa em seu íntimo a partir da morte da esposa, podemos visualizar o que ele estava tentando alcançar ao registrar sua vida.
A lenta deterioração da fazenda e do império construído por ele é o reflexo material do que o come por dentro. - "Julgo que me desnorteie numa errada" (RAMOS, 1985, p. 183). Nos negócios tudo estava a andar para trás e uma infelicidade parecia puxar a outra, mas isto, somente, não seria suficiente para abater um homem acostumado a reverter situações difíceis quando tudo parecia perdido.
No entanto, o pio da coruja no forro da igreja lembra-lhe em vários momentos que nada mais será como antes, que ele não é mais os mesmo e não tem mais a motivação necessária para reconstruir seu mundo. Resta apenas remoer uma última vez todas as coisas que construiu e destruiu em sua empreitada, e é este apanhado geral que testemunhamos no capítulo final. " Faz dois anos que Madalena morreu, dois anos difíceis. E quando os amigos deixaram de vir discutir política, isto se tornou insuportável'. O monólogo interior que conclui o livro pode parecer incongruente com o comportamento de toda uma vida, mas é perfeitamente justificável quando vemos que há um entendimento por parte do narrador/personagem de todo mal causado por ele. Contra ele próprio inclusive.

Cinqüenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem sabe para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? (RAMOS, 1985, p.181)


            O Paulo Honório das páginas finais é um homem arrasado. Todos seus medos, todas as angústias de sua alma ficam estampadas no tom lúgubre do desfecho de seu discurso. Ele não mede palavras e não economiza em símbolos para ilustrar o grau de frustração que o domina por completo.        Todas as coisas que diz nesta parte são tão carregadas de dor, o cansaço é tão presente, que contamina diretamente o andamento da narração. O dilema de não poder escrever volta a assombrá-lo e as forças parecem querer abandoná-lo.

"Ás vezes entro pela noite, passo tempo sem fim acordando lembranças. Outras vezes não me ajeito com esta ocupação nova.
Anteontem e ontem, por exemplo, foram dias perdidos. Tentei debalde canalizar para termo razoável esta prosa que se derrama como a chuva da serra, e o que me apareceu foi um grande desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muita coisa que sinto." (RAMOS, 1985, p.180)

Aparecem arrependimentos, auto-condenações, mas também a certeza de que se outra chance lhe fosse dada, provavelmente suas atitudes seriam a mesma. Ele não alimenta falsa ilusões de que poderia ser uma pessoa melhor. Gostaria de ser, mas não vê como. Não teria condições de lutar contra si próprio e uma essência brutal, apesar de crer "que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins." (RAMOS. 1985, p. 187).
Ao passo que seu sufoco vai aumentando - por conta da vela que irá apagar-se a qualquer minuto, a construção do seu texto vai ficando mais picotada, tal qual suspiros, engasgos, cambalear de cabeças em fadiga. Até que, como se dominada pela escuridão súbita, encerra-se.

AUTORA: Carla M Malaquias P Monteiro

NOTA: Resolvi publicar os trabalhos acadêmicos que tenho arquivado em meu computador, até como forma de guardá-los para o futuro. Vários foram perdidos junto com PCs que "deram pau" e hoje lamento não ter como resgatá-los. 

REFERÊNCIAS ÚTEIS

CANDIDO, Antonio. A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva. 2004.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Record. 1985.

* Vídeo de Tatiana Feltrin sobre SÃO BERNARDO. Este ensaio foi um dos textos de apoio citado por ela. Obrigada Tati.



Um beijo e ótimas leituras! 
                    

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

O VELHO E O MAR de Ernest Hemingway (em 1001 e um livros para ler antes de morrer)


"- Mas o homem não foi feito para a derrota, disse em voz alta. Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado." (p.109)


Editora Civilização Brasileira (1981), 133 páginas.
...


   Santiago está há 84 dias sem pegar um peixe sequer. É um pescador experiente e respeitado no seu vilarejo em Cuba, mas passa a ser visto como um azarado, por conta de suas incursões infrutíferas ao mar. A coisa é tão grave que o seu aprendiz foi proibido pela família se sair para pescar com ele. O pai resolveu que era melhor empregar o garoto em um barco de sorte. 

"O velho chamava-se Santiago. Dia após dia, tripulando sua pequena canoa, ia pescar no GULF STREAM. Mas nos últimos oitenta e quatro dias não apanhara um só peixe. Nos primeiros quarenta levara em sua companhia um rapazinho para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do rapaz, convencidos de que o velho se tornara um SALAO, isto é, azarento da pior espécie, resolveram que o filho fosse trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes apenas em uma semana. O rapaz ficava triste ao ver  o velho regressar todos os dias com a canoa vazia e ia sempre ajudá-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente." (p.9)    

   No octogésimo-quinto dia Santiago sente que algo de extraordinário pode acontecer. Antes do sol nascer ele está de pé e, ajudado por Manolin - seu antigo auxiliar, ele reúne o precário equipamento de trabalho.

  É lindo testemunhar o amor, a amizade, entre o velho e o menino. Principalmente porque é através do olhar terno deste, que entendemos toda a penúria na qual vive o pescador. É Monolin quem observa os detalhes da cabana pobre e decrépita, que trás comida para o ancião - que alega não sentir fome, quando na verdade não tem é recursos para prover o próprio alimento. E o menino sofre porque sabe o que é a vida do amigo.

   Então, o velho pescador entra no mar e, sim, fisga um enorme espadim. Um peixe teimoso, tenaz e forte, exatamente como Santiago, e que transforma a pescaria do octogésimo-quinto dia em um embate de proporções épicas.




"Peixe, falou ele, não o largo enquanto viver." (p.56)


"Peixe, disse o velho, eu gosto muito de você e o respeito muito. Mas vou matá-lo antes do final do dia." (p.57)



   Hemingway construiu uma narrativa enxuta, direta, porém profunda e tocante. Eu, particularmente, fiquei muito comovida, e ainda agora, duas semanas após ter concluído a leitura, me pego pensando na história de Santiago.

   Um texto belíssimo!

Um beijo, e ótimas leituras.